Localização e público-alvo do Projeto Parque Urbano e Marina Beira Mar revelam foco na alta renda

Por Lino Peres, arquiteto urbanista, publicado originalmente no site do autor.

Estive dia 24/10 na Assembleia Legislativa de Santa Catarina para acompanhar a apresentação do Estudo e do Relatório de Impacto Ambiental da Marina projetada na Beira-mar Norte. Minha avaliação engloba seis pontos e leva em conta o fato de que o transporte marítimo é fundamental na região para complementar o sistema geral de mobilidade urbana metropolitana e se trata de uma demanda de décadas, para além da necessária construção de marina em cidade marítima, mas é preciso considerar algumas questões.

1 – O primeiro aspecto a destacar é que a audiência sobre o empreendimento na Câmara de Vereadores de Florianópolis foi realizada há seis anos e, passado esse tempo, a audiência de 24/10 não deu conta de tirar as dúvidas sobre a marina projetada, que terá provavelmente grande impacto ambiental e urbanístico. Em 2016, foram realizadas duas audiências (uma na Câmara Municipal e outra no TCE), ambas com pouca divulgação de informações e de estudos prévios técnicos, com debate raso sobre as implicações ambientais do empreendimento, contestadas à época também por pescadores.

2 – O segundo aspecto é que grande parte dos participantes da última audiência, principalmente técnicos e acadêmicos, não ficaram convencidas de que a localização do empreendimento é a mais adequada. A justificativa apresentada pela empresa contratada para os estudos ambientais foi pouco aprofundada e sem apresentar dados concretos. É preciso que os critérios de localização da Marina na Beira-mar Norte sejam explicitados com estudo comparado de outros locais, como nos Aterros da Baía Sul e Via Expressa Sul ou próximo à ponte Hercílio Luz, como foi aventado na gestão do prefeito Cesar Souza Júnior.

Não se trata de negar marinas, cuja necessidade é debatida há décadas, mas a questão está na localização e nos impactos dela derivados. São muitas marinas na orla insular e continental, mas sem um plano integrado náutico, divorciado do Projeto Orla e do GERCO (Gerenciamento Costeiro), ambos abandonados e com problema de continuidade, que planejariam o uso da orla catarinense e suas bordas d´água. Tanto a Marina do Porto da Barra, interrompida por um processo de mobilização social, técnica e acadêmica, junto ao Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), como a Marina a ser localizada na Beira-mar Norte nascem de uma escolha de local com grandes problemas ambientais ou urbanos, conforme iremos assinalar ao longo do presente artigo.

A justificativa é que o empreendimento entregará à cidade 123 mil m2, sobre o total de 350 mil m2 da Marina, de área pública de lazer, além das vagas para 621 embarcações privadas de 20 a 120 pés e 10% de vagas de marina e vagas para 300 veículos. Nesse sentido, chamo a atenção para o fato de a menos de 1 Km da Beira-mar Norte existir o Aterro da Baía Sul, há muito tempo abandonado, com uso fragmentado e várias áreas ociosas, além do Aterro da Via Expressa Sul, no Saco dos Limões, que é o maior aterro do município e onde há projeto de área de lazer até hoje não desenvolvido e que corre o risco de ser privatizado por processo de leilão pelo atual governo federal.

Mencionei na audiência o concurso de projeto de porto e área público-privada para o Aterro da Baía Sul, nos anos de 2002-2003, do qual fiz parte da equipe de coordenação. Ficou em primeiro lugar um projeto de alto custo que trazia o mar para o antigo perfil portuário e outro, em segundo lugar, que levava a cidade até o mar pelo Aterro. Para ambos, foram empreendidos recursos públicos na realização de concurso e debates. Aquela tentativa já era a segunda maior desde o belo projeto de Burle Marx para a enorme área pública e institucional que foi paulatinamente abandonado nos anos 1980 e 90. Ou seja, como assinalei na audiência, os governantes de plantão perderam por várias vezes a oportunidade de desenvolver um sistema viário de mobilidade urbana e metropolitana com marina pública e privada ao longo desses 40 anos!

Isso revela incompetência pública e privada ao não se implementar um projeto urbano que integre terra e mar, dando à cidade a insularidade que ela merece desde sua fundação, com o devido transporte marítimo que contemple principalmente marinas públicas. E, agora, aparece essa Marina na Beira-mar voltada a um público restrito, em uma região que já é de alta renda, com alto custo e investimento privado, mas com participação e chancela pública, e onde já há gargalos viários evidentes. Portanto, o projeto é duplamente elitista e não contempla acúmulo de debates sobre as localizações acima mencionadas.

Há um patrimônio de ideias e projetos acadêmicos e técnicos para o centro da cidade incluindo os seus dois aterros, para os quais foram investidos vultosos recursos públicos, com endividamento por décadas. Aterros que têm a centralidade tão sonhada por muitas cidades, e, para citar alguns no Brasil, menciono os Aterros do Flamengo, no Rio de Janeiro, e o Parque Marinha do Brasil, em Porto Alegre, que foram incorporados à cidade e apropriados pela população com ampla acessibilidade. Mas, por aqui, os setores governantes e setores econômicos a eles ligados abandonaram um projeto público amplo para a cidade no Aterro da Baía Sul, que foi integrando-se à cidade antiga e à vida urbana e por onde a população circula cotidianamente. Nesse sentido, a Marina na Beira-mar deixa a nu as reais intenções dos grupos dominantes locais: um projeto gigantesco em local já elitizado há décadas, enquanto o Centro Histórico da capital, por onde passa a maioria do povo, continua abandonado e sem projeto relevante e à altura de sua natureza social.  

3 – O terceiro ponto é que a audiência pública foi chamada de apresentação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do empreendimento, mas boa parte da explanação e das falas e comentários dos presentes fugiram do tema central, que seria uma avaliação ambiental do projeto e da obra. Foi, de fato, uma audiência focada nos aspectos turísticos e econômicos do empreendimento, transformando-se em audiência de negócio, como chamou a atenção o vereador Afrânio Boppré, com suas vantagens, em vez de prioritariamente abordar os impactos ambientais, urbanísticos (principalmente viários) e sociais.

O que se tem verificado ao longo dos anos em Florianópolis é que os grupos dominantes volta e meia aparecem com esses projetos impactantes, como foi a Marina do Porto da Barra; o projeto da Ponta do Coral; o projeto de um gigantesco aterro na Beira-mar continental no início dos anos 2000, na gestão do governador Raimundo Colombo, o projeto do teleférico em Florianópolis que atenderia mais o turismo e menos a população dos morros e tantos outros sem estudos estruturantes e globais para o município e a região metropolitana. Plantadas as ideias, começam a providenciar Estudos de Impacto Ambiental e de Vizinhança, mas a partir de um projeto imposto e buscando também impor um consenso de aprovação.  Promovem e gastam recursos públicos e privados em projetos e depois os apresentam à sociedade com o recorrente e genérico discurso de geração de emprego, fomento ao turismo com atração de divisas etc, sendo que os impactos decorrentes reduzem-se à mitigação do que for construído.

4 – Um quarto ponto é o discurso dominante de que a Marina da Beira-mar terá investimento privado sem recursos ou custos para o setor público. Isso não é verdade porque os impactos ambientais e as soluções para mitigá-los implicam participação também do setor público, principalmente aqueles impactos de ordem difusa e geral, na cidade como um todo, além dos impactos das obras em um período de três anos, que o EIA aponta, aqueles que vão surgir a longo prazo. Lembramos que o Tribunal de Contas do Estado (TCE-SC) está analisando esse empreendimento do ponto de vista contratual e de custos, cujo parecer técnico está em andamento, tendo em vista que já fez várias recomendações que devem ser observadas pelo empreendedor e pela Prefeitura.

5 – Um quinto ponto é a que acadêmicos presentes na audiência questionaram a falta de estudos sobre os impactos, na biota marinha, do empreendimento, e o acúmulo de poluentes e patógenos diversos, além de aspectos estruturantes como as mudanças climáticas e acidificação do oceano.  Veja mais em https://noticias.ufsc.br/2022/11/programa-da-ufsc-sugere-aperfeicoamento-do-relatorio-de-impacto-ambiental-da-marina-da-beira-mar/

Chama a atenção também o dado apresentado de que não haverá maiores impactos sobre os ecossistemas vizinhos à Beira-mar Norte, como a Reserva Extrativista do Pirajubaé e as três Pontas (Goulart, Coral e Lessa), assim como as diversas Unidades de Conservação compreendidas entre a Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca e a Reserva Biológica do Arvoredo. Os pescadores, cuja associação esteve presente na audiência, se manifestaram muito preocupados com os impactos na pesca artesanal e fizeram várias perguntas e reclamaram de que não foram suficientemente respondidas pelo empreendedor na audiência. As três pontas citadas são a embocadura de um dos maiores manguezais urbanos do país e que se constituem em uma espécie de berçário marinho. O EIA não analisa a relação do empreendimento com essa região ambientalmente delicada. Afirma, sim, que haverá impactos fortes durante a operação da obra pela dragagem necessária, estimando um período de três anos, sendo que depois e ao longo do tempo iriam diluindo-se os impactos gerados. No entanto, tais afirmações não foram apresentadas com dados consistentes.  

O próprio Ministério Público Federal (MPF) já havia manifestado nos anos de 2012 e 2013 posição de restrição quanto ao impacto ambiental e de mobilidade do empreendimento do hotel de 22 andares na Ponta do Coral, cuja dimensão era bem menor que a Marina agora em questão e que exigiria estudos ambientais e urbanísticos muito mais profundos.

6 – O sexto e último aspecto é que, de um modo geral, os Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental e de Vizinhança acabam entrando em um círculo vicioso de auto-aprovação e afirmação, porque são bancados pelo empreendedor e para o empreendedor, tornando o empreendimento em questão sempre viável, não deixando opção à população de debater outras alternativas, porque os recursos privados ou do empreendedor são destinados à contratação da empresa ou organização que fará os estudos, ficando ao setor público a atribuição de trabalhar com as informações vindas da empresa contratada pelo empreendedor. Ainda que não caiba aprofundar a questão, mais uma vez, o EIA afirma e projeta o empreendimento da Marina sem manter distância técnica e científica adequada, indicando, no máximo, ações mitigatórias posteriores à aprovação e implementação do projeto e obra. Está na hora de se promoverem estudos de forma independente do empreendedor, mas com os recursos dele.  Esses estudos independentes deveriam mostrar outras realidades ou outros aspectos, inclusive levantados pela sociedade organizada e técnica, para além dos grupos econômicos que desfrutarão do empreendimento, focando na função social da obra para a cidade como um todo.

É preciso sair desse ciclo vicioso de grupos hegemônicos pautarem a prefeitura e a cidade, com a sociedade organizada e os movimentos tendo que empreender esforços de análise crítica, quase sempre de forma reativa e sem tempo e sem recursos para desenvolver estudos alternativos à proposta apresentada.  Na verdade, a cidade, em seu processo de planejamento de projetos e obras, deveria ser pensada a partir de seu plano diretor e de um projeto de desenvolvimento estruturante a longo prazo e de forma verdadeiramente participativa e pública. Ou seja, pensar os projetos com base nas prioridades apontadas pelo conjunto da população.

O DISCURSO SOBRE “OS CONTRA”

Como acontece desde os anos 1980, as pessoas e movimentos que estavam na Audiência avaliando o projeto com olhar crítico e expondo dúvidas foram chamadas novamente de “os do contra” ou “os contra a cidade”. Ou seja, toda vez que projetos dessa magnitude econômica e de grande escala são apresentados à cidade, a estratégia é sempre de tentar calar, desqualificar ou controlar vozes discordantes ou que contestem o método de apresentação de projetos sem debate amplo com a sociedade, impostos de cima para baixo.

Por último, foi lamentável a quase mudez do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA). Ainda que seja o órgão responsável por analisar e emitir parecer técnico sobre os estudos apresentados, coordenou a audiência em uma posição passiva, sendo que, no encerramento da audiência, a representação do Instituto afirmou que todo empreendimento é bem-vindo, sendo que os estudos e restrições a serem atendidos não deveriam ser empecilhos para o desenvolvimento. Perguntamos: onde está a distância que um órgão ambiental de governo deve manter? E os princípios de moralidade, transparência e isenção públicas para o papel fundamental de controle?

Estaremos atentos aos desdobramentos desse tema tendo em vista os seis aspectos assinalados e muitos outros que estão em debate.

Localização e público-alvo do Projeto Parque Urbano e Marina Beira Mar revelam foco na alta renda

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Audiência pública sobre o Relatório de Impacto Ambiental da Marina da Beira-Mar Norte

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